O
velho portão de metal dá acesso a uma rua asfaltada, por onde sobe a
gente que caminha lentamente. Pelo caminho desviam de vendedores de
serviços, velas, flores, planos, religiões enquanto olham as pequenas
casas alinhadas, algumas enfeitadas por pequenas árvores, flores e
monumentos de pedra e mármore. Cada uma tem um nome, ou vários, datas,
às vezes uma frase. Apesar do movimento de feriado de Finados, o
silêncio é imperante. Os 60 mil moradores do cemitério São Francisco de
Assis, também conhecido por Cemitério do Itacorubi, descansam.
Eternamente.
Debaixo de sol forte de início de novembro em Florianópolis, as pessoas procuram seus parentes e amigos.
- Débora, ele falou que é acabando o muro na segunda fileira.
- É pra cá, dava pra ver a rua.
- Não é pra lá, é ali embaixo.
- Pega o telefone e liga pra sua tia.
-
Dia de Finados, o trabalho é muito. - diz o administrador do cemitério,
Osmar Ferreira, olhos azuis e sotaque apressado de manezinho - É muita
gente procurando informação.
Osmar rabisca em um mapa
amarelado e roto sobre a mesa da casa amarela, à entrada do cemitério,
de onde administra as pequenas moradas com ajuda de um computador.
Administra os vivos "porque morto não incomoda". De estranho só o caso
da vaca fantasma.
- Seu João, aquele ali - aponta para
um dos funcionários - estava na ronda noturna quando me ligou dizendo
que tinha uma vaca no cemitério. Eu disse a ele, João, você pega uma
corda, laça a vaca e leva pro matadouro. Quando ele voltou, a vaca tinha
sumido. Não caiu dentro de sepultura, por onde é que a vaca ia sair?
Era uma vaca fantasma, né?
As poucas lápides com
epitáfios parecem deixar falar os mortos. "Surfo agora nos mares do
céu", diz Geraldo Oliveira. "A morte é apenas mudança", filosofa Charles
Hartt. Outros jazigos falam por imagens. Têm brasões do Avaí,
Palmeiras, Corinthians, Santos, Vasco, São Paulo. Alguns com guitarras
em mármore, em metal, em desenho.
O que se pensa da
vida e da morte pode-se resumir no cemitério. Clichês para tratar de um assunto delicado como a morte? Sim, há montes
deles e alguns vocês vão reconhecer ao longo da reportagem, afinal,
morrer é o clichê mais batido que existe.
Até as divisões sociais.
"As madames vêm dois, três dias antes do feriado de Finados para botar
flor, arrumar. No feriado mesmo vem o povão", diz a vendedora de flores,
Roseli Anhaia, em frente ao portão de metal. "A gente até pensa nisso
quando seleciona os produtos pra vender. Traz os vasos mais chiques e
caros antes, porque é o que elas gostam de comprar", Roseli revela sua
estratégia de venda.
A ala da comunidade alemã é uma
área reservada que parece um jardim, gramado milimetricamente aparado,
arbustos podados, árvores grandes e estátuas de mármore branco. O
cemitério já foi inaugurado com essa ala particular, em 18 de novembro
de 1925.
- Quem foi o primeiro morto do cemitério? - pergunto ao administrador.
- Tá ali na primeira rua, Waldemar Vieira.
- Morrer custa caro?
- São R$ 280 por lote.
- R$ 280 pra ter onde cair morto. E quem não pode pagar?
- Quem não tem dinheiro, o município paga a gaveta.
Com
a vaga garantida é a vez das funerárias. Elas cercam o cemitério,
oferecendo seus préstimos na hora da morte. Se o cliente for previdente e
planejar os funerais ainda em vida, paga mais barato, em prestações. O
preço é tabelado pela prefeitura e varia de R$ 290 a R$ 3.980 por
serviços como transporte, capela, preparação do morto e flores. Se o
defunto for gordo, o preço aumenta em 60% porque o caixão é reforçado.
Quem
não quiser ser enterrado pode escolher a cremação que sai por R$ 2.930
para o morto precavido que fez o plano. "Plano vitalício", explica o
atendente com voz grave de agente funerário, para assegurar que o plano
funerário não expira se a pessoa resolver não morrer pra já. Para quem
morre de repente, sai mais caro, R$ 3.700.
As cinzas
são entregues em uma urna para "levar à praia, se quiser", diz o agente.
Mas, se o morto acinzentado não gostar de praia tem a opção de virar
diamante, na Suíça, por R$ 12.000. Também há a opção de enviar as cinzas
para o espaço em um foguete da Nasa. O serviço custa US$ 60.000, mas,
pelo menos em Santa Catarina, ninguém nunca foi ao espaço depois de
morto.
O morto que não tem tantas pretensões, ou não
tem família, pode ficar descansado. O município é responsável pelo
enterro de indigentes. Mesmo sem funerais, há lugar garantido na gaveta.
Não é tão ruim assim. No cemitério mais famoso do mundo, o Père
Lachaise, em Paris, a dançarina Isadora Duncan, morta em 1929, repousa
em uma bela gaveta de mármore negro.
A sete palmos
Abrir um buraco com sete palmos de profundidade
para enterrar os mortos é a forma mais comum de destinar os cadáveres
desde a Pré-História, quando o homem de Neandertal começou a pensar em
coisas mais complexas. Nas diferentes culturas e civilizações que se
seguiram a morte cumpriu um importante papel social e cultural.
O
psicólogo Rodrigo Caputo aponta os rituais funerários em diferentes
povos ao longo da história para afirmar que mesmo com diferenças
culturais, a morte é tratada como um acontecimento social. "A maneira
como uma sociedade se posiciona diante da morte e do morto tem um papel
decisivo na constituição e na manutenção de sua própria identidade
coletiva", afirma em seu artigo
O homem e suas representações sobre a morte e o morrer.
No livro
Cidades dos vivos,
o professor de arquitetura da USP, Renato Cymbalista, explica que os
cemitérios têm participação nessa identidade. Essas construções - na
forma que conhecemos hoje - surgiram, no Brasil, a partir do século XIX
quando em 1801 o príncipe regente de Portugal enviou uma carta ao
governador da província de São Paulo ordenando que fosse construído um
cemitério a certa distância da cidade para que "os miasmas pútridos que
exalam os mortos" não afetassem a saúde dos vivos.
Segundo
o professor essa foi uma grande novidade. A partir de então, os mortos
passaram a ser mal-vindos, fedidos e perigosos à saúde dos vivos. A
recomendação do príncipe regente fazia parte de uma mudança sanitarista
que estava apenas começando na Europa naquele período, surgida da
necessidade de se evitar epidemias como a Peste Bubônica, também chamada
Peste Negra, que dizimou um terço da população europeia no século XVII.
Isso
contribuiu para mudar a condição social do morto e a relação dos vivos
com a morte na cultura europeia que influenciou fortemente a nossa,
americana. "Além dos significados higiênico, monumental e religioso, os
cemitérios públicos darão uma resposta urbanística a demandas de ordem
afetiva, e os mortos reconquistam seu lugar dentro do organismo urbano.
Morando em sua própria cidade, os mortos não são mais um problema. Ao
contrário, são parte fundamental da solução urbanística de todas as
cidades, que já não podem mais ser imaginadas sem seus cemitérios",
reitera Cymbalista.
A cidade dos mortos do Itacorubi já
não tem pra onde crescer. No lugar onde todos descansam, os únicos que
trabalham são Osmar Ferreira e seus onze funcionários.
- Meu neto diz que sou o dono do cemitério - brinca Osmar.
São,
em média, quatro mortos por dia que se mudam para a cidade. Não há
espaço para novas sepulturas, apenas gavetas. Dos que chegam, 80% a 90%
já têm o jazigo da família. Houve dois casos de funcionários que se
aposentaram e pouco tempo depois voltaram para o cemitério. Para serem
sepultados.
A morte instiga o mistério e o
desconhecido. Provoca dúvidas, Um grupo de religiosos de paletó e
gravata escuros debaixo de um sol escaldante se aproxima. Dizem ser
representantes de Jesus Cristo. Dizem ter respostas, mas na verdade eram
só perguntas. De onde vim? Para onde vou? O que faço aqui? São questões
que movimentam não só as religiões, mas também setores da ciência.
Afinal, morre o corpo e a alma, o espírito, a energia vital, vai pra
onde?
A ciência e a morte
A proximidade do mundo científico com o
espiritual tem um espaço garantido na física quântica, que veio ganhando
espaço a partir da década de 1960. O professor indiano de física da
Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, Amit Goswami estuda a
permanência da consciência após a morte e acredita que esse é o caminho
para comprovar a reencarnação. Para ele a física quântica pode comprovar
que sem a existência de um conjunto superior - algo que se pode chamar
de Deus - o universo é inconsistente.
A questão da
manutenção da consciência após a morte pode ser interpretada a partir da
lei da conservação da matéria deduzida pelo químico francês Antoine
Laurent Lavoisier (1743-1794). Segundo a lei, "na natureza nada se cria,
nada se perde, tudo se transforma".
Quando o físico Isaac Newton publicou, em 1687, a
Lei de Ação e Reação,
talvez não pensasse que ela pudesse ser usada para explicar como
funciona o carma. Mas no século XVII, a ciência e a religião eram tão
unidas, que a igreja acabava sendo a grande detentora dos saberes
científicos, além de se dedicar à física e à matemática, Newton também
estudava teologia e alquimia. E costumava dizer que a verdadeira
filosofia era pensar sobre a morte.
Não era uma forma
inovadora de pensar. Os filósofos gregos Platão e Aristóteles tinham um
vasto rol de pensamentos sobre o assunto e influenciam cientistas desde
então. Eles enxergavam a morte como única certeza inevitável, já que não
havia como escapar dela.
Em 1595, os ensaios de
Michel de Montaigne foram publicados com uma grande quantidade de linhas
dedicadas a meditar sobre a morte que, para ele, era o mesmo que
meditar sobre a liberdade. “Nenhum mal atingirá quem na existência
compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime
de toda a sujeição e constrangimento”.
Outro cientista famoso, Albert Einstein, em seu livro
Como vejo o mundo,
revelou o que pensava dessa dualidade. "Afirmo que o sentimento
religioso cósmico é o mais forte e mais nobre estímulo à pesquisa
científica".
Com a quantidade de perguntas que a
morte instiga, não falta campo de pesquisa para a ciência. E pelo menos
na medicina, onde o convívio com a morte é mais evidente, os avanços em
pesquisa têm contribuído para trazer luz à hora da morte.
A única certeza desse mundo é que a gente vai morrer.
O coração
para. A circulação do sangue também. As células do cérebro são as
primeiras a morrer, levam de três a sete minutos. O sangue começa a se
concentrar nas partes inferiores do corpo, causando palidez. Em três
horas os músculos enrijecem. Em 24 horas o cadáver esfria. Conforme as
células morrem, as bactérias começam a decompô-lo.
O
momento da morte é descrito de várias formas pela medicina, até porque
não se morre de um só jeito. Segundo dados da Organização Mundial de
Saúde, OMS, a maior causa de morte no mundo é o câncer, em várias
formas, seguido de doenças cardiovasculares. Isso significa que grande
parte das pessoas morre em hospitais, ou passam por eles antes do fim.
Muitos médicos continuam o tratamento dos pacientes mesmo com poucas
chances de cura, mas aumenta o número de profissionais que concordam que
quando há prognóstico reservado - que não há possibilidade de cura -
prosseguir com o tratamento é prolongar o sofrimento do paciente.
Cuidar
da qualidade de vida e de morte dos pacientes terminais é um dos
princípios estabelecidos pela OMS sobre cuidados paliativos. A psicóloga
Márcia Lisbôa confirma, em sua dissertação de mestrado, a importância
de se aceitar, nesses casos, que não há cura. Ela estudou os efeitos
terapêuticos dos rituais de despedida em iminência da morte em
familiares de pacientes terminais no Hospital Universitário da UFSC e
conclui que a despedida beneficia tanto os familiares quanto o paciente.
No artigo em que avalia, com sua equipe, as decisões
médicas em casos onde a cura não é mais possível, a coordenadora da
Residência Médica de Medicina Intensiva do Hospital Universitário de
Florianópolis, Rachel Moritz, afirma que o fato de grande parte das
mortes ocorrerem nos hospitais "tornou imprescindível que os
profissionais dessas instituições aprendam a conviver e a tratar do
indivíduo durante o processo do morrer". Também destaca que os cuidados
com pacientes terminais dependem da "aceitação da finitude do ser humano
e do reconhecimento da incapacidade médica de “curar sempre”.
A psicoterapeuta Bel Cesar no livro
Morrer não se improvisa
relata como a não aceitação da morte pode perturbar os últimos
instantes de vida de uma pessoa. A autora trabalhou com pacientes
terminais com vários tipos de doenças e relata alguns casos no livro,
vividos por ela ou por outros profissionais.
Como o
médico Roger Cole, que relata o caso de John, um rapaz de 26 anos com
Aids, já muito debilitado, em estado terminal. O rapaz estava bastante
revoltado pelo tratamento que ele sabia que não traria cura, só ia
prolongar seu sofrimento, quando o médico conversou com ele. Depois de
tentar conseguir respostas de John que fossem além de evasivas, o doutor
percebeu que não adiantava falar em vida eterna, que para o paciente
significava sofrimento eterno. Teria de dizer apenas o óbvio, ele estava
morrendo e logo tudo terminaria. O rapaz aceitou melhor essas palavras
que qualquer ajuda que haviam-lhe proporcionado, pois, finalmente alguém
não lhe pedia para lutar uma batalha perdida. Ele morreu dois dias
depois, com a família ao redor, tranquilamente.
No livro
Da Morte,
Rubem Alves diz que a morte é nossa única conselheira. Quando temos a
consciência de que vamos morrer, nos sentimos livres para não nos
importar com mais nada. "O que você deve fazer, ao se sentir impaciente
com alguma coisa, é voltar-se para a sua esquerda e pedir que a morte o
aconselhe". Ou, como escreve Paulo Leminski em um poema, "morrer de vez
em quando é a única coisa que me acalma".
No cemitério
do Itacorubi, a cidade onde os moradores não respiram, os conselhos da
morte aparecem nas lápides, as únicas que representam seus habitantes.
De acordo com a família Barcellos, "encontrarás mais segurança e paz,
garantindo-te o êxito no caminho da vida maior". Ironicamente, nas
cidades dos vivos, a paz também é um conselho muito ouvido. Quem sabe ao
ouvir as palavras da morte, viver tenha um novo sentido.
Reportagem publicada em 2014, produzida e
editada por Juliana Frandalozo,
"Para quem a vida sempre foi um mar sem fim"
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