domingo, 21 de setembro de 2014

Despedida

O projeto UmaFoca nasceu como contrapartida de uma bolsa de intercâmbio acadêmico internacional pelo programa Escala Estudantil da Asociación de Universidades Grupo Montevideo, AUGM, financiada pelo Santander Universidades no primeiro semestre de 2009 na Universidad de Santiago de Chile, em Santiago, capital do Chile.

Seu objetivo foi cumprido naquele ano, com posts sobre a preparação, os trâmites de ida e depois sobre a vida de intercambista, passando pelos assuntos mais variados e sempre tentando mostrar diferenças e igualdades culturais entre Brasil e Chile, economia, política, sociedade, manifestações sociais, meio ambiente, comportamento, dicas de viagem, turismo e eventos, o cenário multicultural e acadêmico. Enfim, todo tipo de assunto sob o ponto de vista de uma foca, uma jovem aprendiz jornalista.

Na volta, mantive o blog, pois ainda havia tanta história pra contar que eu não podia encerrar o projeto sem mostrar o que acontece depois do intercâmbio, a readaptação à rotina, novos desafios e o quanto a experiência muda as nossas vidas.

Hoje tenho uma sensação de dever cumprido. O blog teve uma vida feliz e vai ficar na rede para ser útil a quem precise dessas informações. Me despeço deste projeto para me dedicar a outros novos e com a certeza de que UmaFoca e essa foca aqui, jamais deixarão de ser focas, de se interessar pelo mundo com aquele olhar curioso de quem valoriza a primeira vez de tudo e vive as experiências ao máximo.

Aos leitores que nos acompanharam nessa aventura errante e aprendante: Obrigada! Gracias!

E com a certeza de viver com a sabedoria de nossos padrinhos, Pablo Neruda e Amyr Klink, deixamos nossa timeline com suas palavras, que nos guiaram durante esse tempo de blogagens.

"Se trata de que tanto he vivido que quiero vivir otro tanto".

"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver".

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Ser a mudança que queremos no mundo

Mahatma Gandhi era um homem com ideias, defeitos e limitações, mas provou que não é necessária uma revolução armada para construir uma mudança. O importante para ele sempre foi ser. Ser e agir como pensamos. Ser a mudança que queremos para o mundo.

Sobre ser, vou contar algo que tenho presenciado há 10 anos. As pessoas têm variadas visões sobre o vegetarianismo. Para mim, vegetarianismo não é só uma escolha gastronômica, é um movimento. É um ato ativista ambientalista, político-social que vai além da mera decisão de deixar de comer carne e derivados. É uma escolha pessoal. É optar pela não-agressão a animais, à terra, aos ecossistemas, ao ser humano. É escolher conscientemente dentre as variadas opções de consumo, aquela que é a mais justa, a mais solidária, aquela que provoque o menor sofrimento possível a toda a forma de vida existente.

Hoje é muito fácil ser vegetariano. A agricultura agroecológica veio prá ficar, é possível visitar os sítios desses agricultores. Eles produzem todo tipo de alimento, até galinha, boi, vaca, com o menor sofrimento.

Daí você tira que um ovolactovegetariano que compra tudo o que consome no mercado, sem se preocupar com a forma que o alimento foi produzido ou transportado, não é mais vegetariano que aquele que come ovos de galinha, Daquela caipira, criada solta, que bota ovo quando quer e não presa numa gaiola iluminada 24 horas por dia, a um nível de estresse desumano.

Não é mais vegetariano aquele que toma leite de soja de uma grande empresa como a Bunge que contamina as produções dos pequenos agricultores com pólen transgênico, que forçou a liberação política dos transgênicos não porque acredita que a transgenia possa realmente diminuir o uso de insumos agrotóxicos, mas porque é mais lucrativa.

Esse vegetariano que toma leite de soja não é mais vegetariano que aquele que toma leite da vaca criada no pasto, tratada com carinho, com respeito e cuidado. Ordenhada com o mínimo de dor, respeitando sua produção natural.

O vegetariano que corre para a seção de orgânicos do mercado e paga seis reais numa alface embalada, a meu ver não é mais vegetariano que aquele que sabe o horário da feira agroecológica, conhece o nome dos produtores e compra a alface deles por um real.

(Só um adendo: agricultura orgânica é o primeiro passo para a cultura sem agrotóxico. A cultura realmente certificada sem agrotóxico é a agroecológica.)

O vegetariano não precisa se chamar de vegano, porque não precisa de rótulos, apenas de ação. O veganismo é um movimento impossível para os dias de hoje, a menos que você aceite viver isolado, sem transporte, sem facilidades industriais, plantando a própria comida, tecendo a própria roupa e construindo as próprias ferramentas, a própria morada, sem nada além das próprias mãos. Deve ser uma vida boa, apesar de dura, mas temo que para mim não sirva para a vida toda. Sou bicho do mato, preciso me forçar a conviver com os humanos, para viver com eles, para me humanizar.

Também seria difícil para mim colocar os animais num cercado com a alegação veganista de que nenhum deles deve trabalhar. Nós animais humanos trabalhamos, porque nos privar do convívio e da ajuda dos animais? Para quê tanto orgulho e radicalismo? Acredito que a evolução do pensamento nesse sentido deva ir para o convívio respeitoso com os animais, não seu isolamento de nossa sociedade.

Por fim, acredito na vida natural tal como Thoureau vivia. Ele se isolava numa cabana à beira do rio por meses, com um punhado de grãos e vivendo da caça. Quando é para a sobrevivência, a caça, a pesca artesanal é justa. É a luta pela vida, tão naturalmente aceita pelos animais no mar e nas florestas. Não devemos perverter o natural, mas não devemos nos resumir a sacralizá-lo, devemos apenas saber conviver respeitosamente com o natural, a natureza.

Cada um de nós somos a nossa própria consciência e provocamos a mudança, seja de ações, seja de pensamentos, que queremos no mundo. Não precisamos apregoar nossas ideias como se fossem leis, bater de casa em casa desrespeitando o pensamento alheio, gritando nos ouvidos de quem não quer ouvir. Em 10 anos de vegetarianismo, aprendi que as mudanças mais sólidas e duradouras são lentas e silenciosas. Vi pessoas se transformarem porque eu me transformei, sem que eu dissesse uma palavra pra promover o vegetarianismo.

Enfim, entendo perfeitamente que sim, é possível ser a mudança que desejamos para o mundo, sem ambições, sem megalomania, sem pregação de casa em casa, discursos acalorados, paranoia, hashtags, campanhas publicitárias apelativas cheias de celebridades ou mídias sociais.

É simples, simplesmente ser.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Jornalismo - guias e manuais

Manual do repórter de polícia
http://manualdoreporterdepolicia.blogspot.com.br/?view=flipcard
É um dicionários de termos e expressões corriqueiras para quem cobre polícia. Fundamental também para quem cobre geral não se atrapalhar com coisas do direito penal e o policialês.

Guia para a verificação de conteúdo digital
http://www.verificationhandbook.com/book_br/index.php
Um bom guia para jornalistas digitais. Principalmente aqueles repórteres que são contratados para não sair do mundo web e precisam saber se suas fontes online são confiáveis. “No ambiente digital de hoje em dia, onde boatos e conteúdos falsos circulam, jornalistas precisam ser capazes de diferenciar materiais autênticos dos forjados. Esse manual inovador é leitura obrigatória para jornalistas que lidam com todo tipo de conteúdo gerado por usuários.” Wilfried Ruetten, Diretor, Centro Europeu de Jornalismo (EJC).

Mais guias, manuais e ebooks sobre jornalismo disponíveis para download neste site legal aqui.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Mestre em defesa: Do desastre para o risco

Não só bacharel, mas mestre em Jornalismo agora. Não que títulos signifiquem muito para mim, mas foram três anos intensos e preocupantes, de pesquisa profunda e descabelante. Defesa devidamente feita, graças ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Meditsch, e aos membros da banca que foram maravilhosos, Profa. Dra.Cilene Victor, Prof. Dr. Rogério Christofoletti, Prof. Dr. Antônio Edésio Jungles.

Espero que tenha conseguido, neste trabalho, diminuir a distância entre o Jornalismo e os órgãos de gestão e Redução de Risco e Desastre, mostrando onde ambos se confluem para a cooperação em situações de emergência.

O resultado está no repositório online da biblioteca da UFSC:

Do desastre para o risco: qualidade na cobertura em revistas semanais de informação

Resumo
Este trabalho parte do debate sobre a questão da qualidade no Jornalismo e o relaciona com seu papel de comunicação e informação na gestão e Redução de Risco e Desastre. Com o objetivo de refletir sobre essa relação, avalia a qualidade do produto da cobertura realizada pelas três revistas semanais de informação de maior circulação nacional, Veja, Isto É e Época, nos dois maiores desastres já ocorridos no Brasil, respectivamente em Santa Catarina, em novembro de 2008, e na região serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, e entrevista os jornalistas que trabalharam nas coberturas analisadas. A pesquisa conclui que as coberturas têm qualidade satisfatória no que se refere à informação factual sobre os eventos em si, mas que existe espaço e necessidade de ir além do acontecimento catastrófico, buscando expandir seu foco para a percepção da exposição cada vez maior da sociedade ao risco e às condições de vulnerabilidade, ampliando a responsabilização da mídia diante de assuntos de interesse público. Para tanto, indica a necessidade de treinamento e especialização dos profissionais para que as coberturas jornalísticas sejam mais qualificadas e se desloquem do desastre para o risco.

Abstract
This work brings the debate on the issue of quality in journalism and relates to its role in communication and information on Disaster Risk Reduction and Management. With the goal to reflect on this issue, the study evaluates the quality of the coverage done by the three biggest Brazilian weekly news magazines, Veja, IstoÉ and Época, at the worst disasters ever occurred, respectively in Santa Catarina, in November 2008, and in the mountainous region of Rio de Janeiro, in January 2011, and also analyzed interviews of journalists who worked in coverage. The research concludes that the coverages have satisfactory quality with regard to factual information about the disaster itself, but that there is room and need to go beyond the catastrophic event, seeking to expand its focus to the perception of growing exposure of society to risk and vulnerability conditions, increasing the media accountability on issues of public interest. For this, it indicates the need for training and especialization of professional for more qualified media coverage for moving from disaster to risk.

Descrição: Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, Florianópolis, 2014

URI: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/128973

sábado, 2 de agosto de 2014

No rastro da morte

Abotoar o paletó de madeira. Dar o último suspiro. Virar presunto. Ir para a terra dos pés juntos. Encerrar sua existência. Comer capim pela raiz. Virar comida de vermes. Fechar os olhos pela última vez. Partir dessa pra melhor. Virar alma penada. Acertar as contas com Deus. Virar estrela. Ir para o além. Bater as botas  

Afinal, como é morrer?


Texto: Juliana Frandalozo












Photo credit: Cheer Up, Man! via photopin (license)




O velho portão de metal dá acesso a uma rua asfaltada, por onde sobe a gente que caminha lentamente. Pelo caminho desviam de vendedores de serviços, velas, flores, planos, religiões enquanto olham as pequenas casas alinhadas, algumas enfeitadas por pequenas árvores, flores e monumentos de pedra e mármore. Cada uma tem um nome, ou vários, datas, às vezes uma frase. Apesar do movimento de feriado de Finados, o silêncio é imperante. Os 60 mil moradores do cemitério São Francisco de Assis, também conhecido por Cemitério do Itacorubi, descansam. Eternamente.

Debaixo de sol forte de início de novembro em Florianópolis, as pessoas procuram seus parentes e amigos.

- Débora, ele falou que é acabando o muro na segunda fileira.

- É pra cá, dava pra ver a rua.

- Não é pra lá, é ali embaixo.

- Pega o telefone e liga pra sua tia.

- Dia de Finados, o trabalho é muito. - diz o administrador do cemitério, Osmar Ferreira, olhos azuis e sotaque apressado de manezinho - É muita gente procurando informação.

Osmar rabisca em um mapa amarelado e roto sobre a mesa da casa amarela, à entrada do cemitério, de onde administra as pequenas moradas com ajuda de um computador. Administra os vivos "porque morto não incomoda". De estranho só o caso da vaca fantasma.

- Seu João, aquele ali - aponta para um dos funcionários - estava na ronda noturna quando me ligou dizendo que tinha uma vaca no cemitério. Eu disse a ele, João, você pega uma corda, laça a vaca e leva pro matadouro. Quando ele voltou, a vaca tinha sumido. Não caiu dentro de sepultura, por onde é que a vaca ia sair? Era uma vaca fantasma, né?

As poucas lápides com epitáfios parecem deixar falar os mortos. "Surfo agora nos mares do céu", diz Geraldo Oliveira. "A morte é apenas mudança", filosofa Charles Hartt. Outros jazigos falam por imagens. Têm brasões do Avaí, Palmeiras, Corinthians, Santos, Vasco, São Paulo. Alguns com guitarras em mármore, em metal, em desenho.

O que se pensa da vida e da morte pode-se resumir no cemitério. Clichês para tratar de um assunto delicado como a morte? Sim, há montes deles e alguns vocês vão reconhecer ao longo da reportagem, afinal, morrer é o clichê mais batido que existe.

Até as divisões sociais. "As madames vêm dois, três dias antes do feriado de Finados para botar flor, arrumar. No feriado mesmo vem o povão", diz a vendedora de flores, Roseli Anhaia, em frente ao portão de metal. "A gente até pensa nisso quando seleciona os produtos pra vender. Traz os vasos mais chiques e caros antes, porque é o que elas gostam de comprar", Roseli revela sua estratégia de venda.

A ala da comunidade alemã é uma área reservada que parece um jardim, gramado milimetricamente aparado, arbustos podados, árvores grandes e estátuas de mármore branco. O cemitério já foi inaugurado com essa ala particular, em 18 de novembro de 1925.

- Quem foi o primeiro morto do cemitério? - pergunto ao administrador.

- Tá ali na primeira rua, Waldemar Vieira.

- Morrer custa caro?

- São R$ 280 por lote.

- R$ 280 pra ter onde cair morto. E quem não pode pagar?

- Quem não tem dinheiro, o município paga a gaveta.

Com a vaga garantida é a vez das funerárias. Elas cercam o cemitério, oferecendo seus préstimos na hora da morte. Se o cliente for previdente e planejar os funerais ainda em vida, paga mais barato, em prestações. O preço é tabelado pela prefeitura e varia de R$ 290 a R$ 3.980 por serviços como transporte, capela, preparação do morto e flores. Se o defunto for gordo, o preço aumenta em 60% porque o caixão é reforçado.

Quem não quiser ser enterrado pode escolher a cremação que sai por R$ 2.930 para o morto precavido que fez o plano. "Plano vitalício", explica o atendente com voz grave de agente funerário, para assegurar que o plano funerário não expira se a pessoa resolver não morrer pra já. Para quem morre de repente, sai mais caro, R$ 3.700.

As cinzas são entregues em uma urna para "levar à praia, se quiser", diz o agente. Mas, se o morto acinzentado não gostar de praia tem a opção de virar diamante, na Suíça, por R$ 12.000. Também há a opção de enviar as cinzas para o espaço em um foguete da Nasa. O serviço custa US$ 60.000, mas, pelo menos em Santa Catarina, ninguém nunca foi ao espaço depois de morto.

O morto que não tem tantas pretensões, ou não tem família, pode ficar descansado. O município é responsável pelo enterro de indigentes. Mesmo sem funerais, há lugar garantido na gaveta. Não é tão ruim assim. No cemitério mais famoso do mundo, o Père Lachaise, em Paris, a dançarina Isadora Duncan, morta em 1929, repousa em uma bela gaveta de mármore negro.

A sete palmos

Abrir um buraco com sete palmos de profundidade para enterrar os mortos é a forma mais comum de destinar os cadáveres desde a Pré-História, quando o  homem de Neandertal começou a pensar em coisas mais complexas. Nas diferentes culturas e civilizações que se seguiram a morte cumpriu um importante papel social e cultural.

O psicólogo Rodrigo Caputo aponta os rituais funerários em diferentes povos ao longo da história para afirmar que mesmo com diferenças culturais, a morte é tratada como um acontecimento social. "A maneira como uma sociedade se posiciona diante da morte e do morto tem um papel decisivo na constituição e na manutenção de sua própria identidade coletiva", afirma em seu artigo O homem e suas representações sobre a morte e o morrer.

No livro Cidades dos vivos, o professor de arquitetura da USP, Renato Cymbalista, explica que os cemitérios têm participação nessa identidade. Essas construções - na forma que conhecemos hoje - surgiram, no Brasil, a partir do século XIX quando em 1801 o príncipe regente de Portugal enviou uma carta ao governador da província de São Paulo ordenando que fosse construído um cemitério a certa distância da cidade para que "os miasmas pútridos que exalam os mortos" não afetassem a saúde dos vivos.

Segundo o professor essa foi uma grande novidade. A partir de então, os mortos passaram a ser mal-vindos, fedidos e perigosos à saúde dos vivos. A recomendação do príncipe regente fazia parte de uma mudança sanitarista que estava apenas começando na Europa naquele período, surgida da necessidade de se evitar epidemias como a Peste Bubônica, também chamada Peste Negra, que dizimou um terço da população europeia no século XVII.

Isso contribuiu para mudar a condição social do morto e a relação dos vivos com a morte na cultura europeia que influenciou fortemente a nossa, americana. "Além dos significados higiênico, monumental e religioso, os cemitérios públicos darão uma resposta urbanística a demandas de ordem afetiva, e os mortos reconquistam seu lugar dentro do organismo urbano. Morando em sua própria cidade, os mortos não são mais um problema. Ao contrário, são parte fundamental da solução urbanística de todas as cidades, que já não podem mais ser imaginadas sem seus cemitérios", reitera Cymbalista.

A cidade dos mortos do Itacorubi já não tem pra onde crescer. No lugar onde todos descansam, os únicos que trabalham são Osmar Ferreira e seus onze funcionários.

- Meu neto diz que sou o dono do cemitério - brinca Osmar.

São, em média, quatro mortos por dia que se mudam para a cidade. Não há espaço para novas sepulturas, apenas gavetas. Dos que chegam, 80% a 90% já têm o jazigo da família. Houve dois casos de funcionários que se aposentaram e pouco tempo depois voltaram para o cemitério. Para serem sepultados.

A morte instiga o mistério e o desconhecido. Provoca dúvidas, Um grupo de religiosos de paletó e gravata escuros debaixo de um sol escaldante se aproxima. Dizem ser representantes de Jesus Cristo. Dizem ter respostas, mas na verdade eram só perguntas. De onde vim? Para onde vou? O que faço aqui? São questões que movimentam não só as religiões, mas também setores da ciência. Afinal, morre o corpo e a alma, o espírito, a energia vital, vai pra onde?

 

A ciência e a morte

A proximidade do mundo científico com o espiritual tem um espaço garantido na física quântica, que veio ganhando espaço a partir da década de 1960. O professor indiano de física da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, Amit Goswami estuda a permanência da consciência após a morte e acredita que esse é o caminho para comprovar a reencarnação. Para ele a física quântica pode comprovar que sem a existência de um conjunto superior - algo que se pode chamar de Deus - o universo é inconsistente.

A questão da manutenção da consciência após a morte pode ser interpretada a partir da lei da conservação da matéria deduzida pelo químico francês Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794). Segundo a lei, "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".

Quando o físico Isaac Newton publicou, em 1687, a Lei de Ação e Reação, talvez não pensasse que ela pudesse ser usada para explicar como funciona o carma. Mas no século XVII, a ciência e a religião eram tão unidas, que a igreja acabava sendo a grande detentora dos saberes científicos, além de se dedicar à física e à matemática, Newton também estudava teologia e alquimia. E costumava dizer que a verdadeira filosofia era pensar sobre a morte.

Não era uma forma inovadora de pensar. Os filósofos gregos Platão e Aristóteles tinham um vasto rol de pensamentos sobre o assunto e influenciam cientistas desde então. Eles enxergavam a morte como única certeza inevitável, já que não havia como escapar dela.

Em 1595, os ensaios de Michel de Montaigne foram publicados com uma grande quantidade de linhas dedicadas a meditar sobre a morte que, para ele, era o mesmo que meditar sobre a liberdade. “Nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda a sujeição e constrangimento”.

Outro cientista famoso, Albert Einstein, em seu livro Como vejo o mundo, revelou o que pensava dessa dualidade. "Afirmo que o sentimento religioso cósmico é o mais forte e mais nobre estímulo à pesquisa científica". 

Com a quantidade de perguntas que a morte instiga, não falta campo de pesquisa para a ciência. E pelo menos na medicina, onde o convívio com a morte é mais evidente, os avanços em pesquisa têm contribuído para trazer luz à hora da morte.

A única certeza desse mundo é que a gente vai morrer.

O coração para. A circulação do sangue também. As células do cérebro são as primeiras a morrer, levam de três a sete minutos. O sangue começa a se concentrar nas partes inferiores do corpo, causando palidez. Em três horas os músculos enrijecem. Em 24 horas o cadáver esfria. Conforme as células morrem, as bactérias começam a decompô-lo.


O momento da morte é descrito de várias formas pela medicina, até porque não se morre de um só jeito. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, OMS, a maior causa de morte no mundo é o câncer, em várias formas, seguido de doenças cardiovasculares. Isso significa que grande parte das pessoas morre em hospitais, ou passam por eles antes do fim. Muitos médicos continuam o tratamento dos pacientes mesmo com poucas chances de cura, mas aumenta o número de profissionais que concordam que quando há prognóstico reservado - que não há possibilidade de cura - prosseguir com o tratamento é prolongar o sofrimento do paciente.

Cuidar da qualidade de vida e de morte dos pacientes terminais é um dos princípios estabelecidos pela OMS sobre cuidados paliativos. A psicóloga Márcia Lisbôa confirma, em sua dissertação de mestrado, a importância de se aceitar, nesses casos, que não há cura. Ela estudou os efeitos terapêuticos dos rituais de despedida em iminência da morte em familiares de pacientes terminais no Hospital Universitário da UFSC e conclui que a despedida beneficia tanto os familiares quanto o paciente.

No artigo em que avalia, com sua equipe, as decisões médicas em casos onde a cura não é mais possível, a coordenadora da Residência Médica de Medicina Intensiva do Hospital Universitário de Florianópolis, Rachel Moritz, afirma que o fato de grande parte das mortes ocorrerem nos hospitais "tornou imprescindível que os profissionais dessas instituições aprendam a conviver e a tratar do indivíduo durante o processo do morrer". Também destaca que os cuidados com pacientes terminais dependem da "aceitação da finitude do ser humano e do reconhecimento da incapacidade médica de “curar sempre”.

A psicoterapeuta Bel Cesar no livro Morrer não se improvisa relata como a não aceitação da morte pode perturbar os últimos instantes de vida de uma pessoa. A autora trabalhou com pacientes terminais com vários tipos de doenças e relata alguns casos no livro, vividos por ela ou por outros profissionais.

Como o médico Roger Cole, que relata o caso de John, um rapaz de 26 anos com Aids, já muito debilitado, em estado terminal. O rapaz estava bastante revoltado pelo tratamento que ele sabia que não traria cura, só ia prolongar seu sofrimento, quando o médico conversou com ele. Depois de tentar conseguir respostas de John que fossem além de evasivas, o doutor percebeu que não adiantava falar em vida eterna, que para o paciente significava sofrimento eterno. Teria de dizer apenas o óbvio, ele estava morrendo e logo tudo terminaria. O rapaz aceitou melhor essas palavras que qualquer ajuda que haviam-lhe proporcionado, pois, finalmente alguém não lhe pedia para lutar uma batalha perdida. Ele morreu dois dias depois, com a família ao redor, tranquilamente. 

No livro Da Morte, Rubem Alves diz que a morte é nossa única conselheira. Quando temos a consciência de que vamos morrer, nos sentimos livres para não nos importar com mais nada. "O que você deve fazer, ao se sentir impaciente com alguma coisa, é voltar-se para a sua esquerda e pedir que a morte o aconselhe". Ou, como escreve Paulo Leminski em um poema, "morrer de vez em quando é a única coisa que me acalma".

No cemitério do Itacorubi, a cidade onde os moradores não respiram, os conselhos da morte aparecem nas lápides, as únicas que representam seus habitantes. De acordo com a família Barcellos, "encontrarás mais segurança e paz, garantindo-te o êxito no caminho da vida maior". Ironicamente, nas cidades dos vivos, a paz também é um conselho muito ouvido. Quem sabe ao ouvir as palavras da morte, viver tenha um novo sentido.




Reportagem publicada em 2014, produzida e editada por Juliana Frandalozo,

"Para quem a vida sempre foi um mar sem fim"


Material jornalístico exclusivo do blog Uma Foca. Licença de uso: Trechos podem ser reproduzidos apenas com a citação obrigatória da fonte, acompanhada do permalink desta página. Reprodução integral somente com permissão da autora.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Quão plural deve ser o jornalismo?

Com a internet e as mídias sociais popularizadas toda e qualquer pessoa tem voz e essa voz pode ter a sorte ou o azar de ser amplificada para todo o mundo. O caso da torcedora gremista achincalhada por ter sido flagrada pelas câmeras gritando "macaco" para um jogador do time rival une-se a outros tantos que mostram que o mundo não está preparado para a pluralidade de vozes.

Um dos pilares do jornalismo de qualidade, a pluralidade de vozes determina que uma matéria jornalística deve abordar os diferentes lados de uma mesma questão buscando a isenção e a imparcialidade possível, deixando que as opiniões sejam emitidas pelas fontes, não pela matéria.

Mas que vozes são essas? Devem ser vozes representativas, de fontes confiáveis que tem algo relevante a dizer.

Se partimos do critério de que o jornalista tem suas limitações e usa seus recursos para escolher suas fontes, admitimos que não é qualquer voz que entra na matéria e, portanto, não é exatamente plural essa escolha.

Se partimos do critério de que "a voz do povo é a voz de Deus", as mídias sociais ressaltam vozes pela multiplicidade de "curtidas" que representa sua popularidade. Mas a voz do povo é a voz de Deus? Bem, foi o povo quem decidiu libertar o ladrão e crucificar Jesus, daí vocês tiram seu ponto de vista.

As mídias sociais não ressaltam vozes representativas. O povo não escolhe seus representantes baseados em critérios sérios e sábios. Escolhe por afinidade, amor e ódio, baseados no senso simples de "gosto", "não gosto", exatamente como nas mídias sociais. Pior. Escolhem aquele que mais aparece, o mais popular, porque acreditam que a massa sabe quem é o melhor. Mas cada indivíduo da massa escolhe dessa forma. E é por isso que continua sendo massa de manobra.

A massa segue impulsos coletivos ou o calor do momento, como afirmou a torcedora gremista e um dos assassinos da dona de casa de Santos morta após ser linchada por moradores que 'achavam' que ela era uma criminosa. Também seguem o calor do momento as pessoas que estão achincalhando a torcedora gremista porque foi a imagem dela que ficou repetindo e repetindo na TV e pelas mídias sociais. As outras dezenas de torcedores que gritaram macaco, negros inclusive, não são nem citados.

Podemos confiar no impulso coletivo, no calor do momento? Não é necessário citar alguém, ou seriam milhares de sábios para justificar a resposta: Não. Devemos trazer as emoções guardadas pela razão, essa é a postura sábia. Mas esse é um comportamento que não combina com as massas. Massas combinam com o calor do momento, a emoção a flor da pele, aquele momento em que o indivíduo se torna coletivo para justificar atitudes que não faria como indivíduo, ruins ou boas.

E é por isso que a pluralidade de fontes, a total liberdade que a internet e as mídias sociais proporcionam, é falsa e perigosa. Permite que ignorantes ganhem voz e provoquem impulsos coletivos rasteiros, de raiva, de preconceito, de linchamento moral, que por vezes se torna físico.

O jornalismo tem compromisso com a verdade e a responsabilidade social, com a vigilância do poder e com a  garantia de que as vozes serão tão plurais quanto possível. Mas que essas vozes serão relevantes e não apenas agitadores de momento. O poder de julgar que vozes são essas vem do treinamento,da prática, do conhecimento e da ética. Não do calor do momento.